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Reflexão, arte e manifesto

Texto: Lucio Neves

Tem vindo a ressurgir recentemente na discussão pública o tema, infelizmente já recorrente ao longo da idade moderna, da perspetiva inquinada da história segundo nos foi contada e ensinada. Desafio-me, por isso, a fazer uma reflexão sobre essa temática abstraindo-me da minha própria pertença.  

Abordemos, a título de exemplo, o derrube de estátuas, uma das razões da inflamação da opinião pública sob o argumento da destruição da história ou, no plano económico, de património público. Quase como prevendo uma agudização da “crise identitária” promovida, dizem, desde a entrada de Portugal na antiga C.E.E.  

Antes de tudo será necessário constatar o óbvio: uma estátua não é apenas um relato histórico. É uma representação artística, mais ou menos realista, em homenagem a uma determinada personalidade ou acontecimento. Também por isso é um objeto carregado de valor simbólico que, a nível urbano e arquitetónico, emana significância para os transeuntes, chamemos-lhes assim. Logo, sendo a significância atribuída a um objeto resultante do meio em que a identidade do individuo foi construída e, em certos contextos, da sua identidade física objetiva, temos de assumir que o mesmo objeto terá um significado diferente para diferentes sujeitos. Se uma das pedras basilares da construção de um Estado de sucesso passa, impreterivelmente, pela criação de uma identidade e pertença nacional coletiva, abarcando todos os seus cidadãos, não será no mínimo justo a existência de uma reflexão mais aprofundada sobre a forma como temos olhado para a história? Se nos consideramos progressista e evoluídos e, durante as últimas décadas, temos promovido a globalização, a existência e identificação enquanto seres humanos antes e mais que tudo, como podemos continuar sem efetuar uma análise séria sobre estes pequenos/grandes pormenores que contribuem implícita e explicitamente para a desagregação e divisão seja entre países ou culturas? 

Leio recorrentemente referência que tentam ligar a nacionalidade a uma determinada etnia ou característica física sem perceberem sequer no erro em que incorrem. Associação de determinadas características à priori com base em qualquer característica física ou metafisica. Temos de refletir. 

O caracter eurocêntrico é inegável no doutrinamento histórico. Vejamos a forma como é tratado o crime de guerra, por parte dos soviéticos na polónia, onde afirmam num documentário, transmitido na televisão por cabo sobre a WWII, a descoberta de uma vala comum contendo aproximadamente 5mil corpos de “Oficiais” e “intelectuais” polacos (deixando no ar um numero potencial de 22mil vitimas) do regime de Estaline a quando da libertação da Polónia contudo, a quando da libertação de Paris, é sabido  da prossecução feita aos, desta vez tão genericamente definidos , “colaboracionistas” a quando das suas execuções sumárias por fuzilamento durante a chamada “Épuration sauvage” (sendo que há também controvérsia no número de vitimas, visto fontes americanas na altura referirem um numero total que ascendia aos 80mil). Basta fazer uma pequena correlação entre um interessante documentário sobre Stalislaw Szukalksi e analisando a arte característica do escultor e o manifesto que assinou na sua juventude, para perceber como dois acontecimentos, aparentemente sem qualquer correlação, podem ter tido a mesma capa justificativa por detrás de tamanha selvajaria. Nada disto tem por objetivo a desculpabilização de um ou outro ato, muito menos de definir um como mais nefasto que outro apenas, como digo no inicio do texto, servirá para perceber as subtilezas presentes no discurso histórico eurocêntrico que é comum, seja pelas vias tradicionais de ensino ou pelos media que, após a saída do individuo do ambiente escolar, servem comumente como fonte de informação e aquisição cultural durante o seu percurso de vida. 

 Claro que a complexidade do relato histórico impõe uma contenção e uma criação de discursos que facilite a sua assimilação e difusão sendo, por essa e outras vias, já referidas anteriormente,  inegavelmente tingida por uma opção de perspetiva que dê relevo aos grandes feitos e menos aos fracassos sendo também ambivalente a definição de uma determinada ação como feito ou fracasso pela própria forma como é comunicado e relatado.